domingo, 10 de maio de 2009

Uma fábula

Aos dois anos ela veio da itália com os pais para o interior, do interior do estado de Minas Gerais. Os pais, junto com tantos outros, formariam um novo lugarejo.
A tradição católica rigorosa a acompanhou por toda a vida. Casou-se aos catorze, em uma época em que isso era comum. Passou aos filhos, aos netos e aos bisnetos cada preceito religioso que a si fora ensinado.
Já adultos os bisnetos não se esqueceriam das tradicionais semanas santas, passadas no vilarejo e regadas de muito bacalhau e peixes frescos, consumidos por toda carnívora família, temerosa da heresia de se comer carne vermelha nos dias sagrados.

Com 91 anos perdeu o marido e, na fuga da falta dos 77 anos conjugais, saiu de seu vilarejo para morar com uma filha. Um mundo novo se apresentou.
Um dia, a família reunida questiou porque ela, vinda da Itália, fazia muitas massas, mas nenhuma pizza. "Eu já ouvi falar muito, mas nunca comi isso, a tal pizza". Se apaixonou pela calabresa.

Aos 96 já era sabido que uma simples (para adultos e jovens fortes) gripe estava a levá-la, aos poucos, de todos.
A semana santa se proximava e, no hospital, os filhos se preocupavam em garantir que o cardápio para a adoentada resguardasse a tradição de tanto bacalhau.
Na quarta-feira, já bem debilitada, recebeu como jantar uma quente sopa de legumes.

"Não quero essa sopa"
"Mas mamãe, a senhora tem que comer, se fortalecer" - insistia uma filha já preocupada.
"Claro que quero comer. Mas quero pizza. De calabresa" - e sorriu como uma criança que faz arte.

(Se queres tomar esta como uma crônica de comportamento, encerre aqui sua leitura. Com a boa velinha e heresia. Mas o título já o avisou de esta ser uma fábula, e para chegarmos a isso, há o desenrolar dos fatos)


De pronto o pedido foi atendido. Claro que não foi tão simples. Além dos olhares, se ouvia de um ou outro "É... acho que ela já está perdendo a sanidade" ou "Mas ela? Ela mesmo pediu com carne?".

Ela devorou a pizza. Uma das bisnetas, que já comia carne desde a segunda, aproveitou de sua juventude e perguntou o porque daquele ato (e ganhou um beliscão da mãe).

Tranquilamente, a velha se recostou na maca com o pedaço de pizza na mão e olhando para ele começou "Tem coisas que demoramos por descobrir" - e olhando para a neta, concluiu

"E de tudo o que descobri nessa vida tão longa, o que mais me importa é perceber que conhecendo toda gente, e me estando bem com Deus, digo com muita tranquilidade: o grande problema não é o que colocamos pra dentro de nós, mas o que de dentro de nós sai".

Três dias depois ela se foi.



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Não importa o quanto se esforça em meios, jeitos, atividades e dietas para tornar melhor o corpo, o organismo, a digestão ou a sociedade.
Nossas reações nos tornam humanos, e a maldade que algumas vezes sái de dentro de alguns os tornam podres por dentro.

A moral da história é até mais simples que isso, cada um que tire a sua.


Hoje a melancolia habitual me levou à nostalgia de meus feriados santos até 2003, quando a bisa Geralda se foi.

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