quinta-feira, 7 de maio de 2009

A palo seco

As dores de uma vida podem ser muitas. E ninguém é tão grande pra curar ou saber de todas elas.
Assim, a palo seco seguem tantos Marcos, Pedros, Josés, Gabrielas, Marias, Anas...
Perdidos em misérias de horas, dias, semanas, meses, anos e vidas passados em meio ao vão de tantas outras tão iguais.

A Maria voltou pra casa correndo pra ficar junto dos filhos, pois não sabe se tem mais medo da doença do mosquito, da do porco, ou da violência de onde vive, responsável por levar tantos outros filhos de mães inocentes. Ela se arrependeu o dia inteiro de ter lido o jornal.

O Marcos que com o coração partido chorava ao som das mais melosas canções, abafado pelo travesseiro. Mais que a dor da traição, lhe doía o orgulho em imaginar toda família o assistindo assim, tão mal. Ninguém imaginava que o namoro de tantos anos acabaria de forma tão cruel. Ele se arrependia, no fundo, de ter remexido o email da namorada.

Pedro bebia mais um gole da cachaça. A mulher já estava pronta pro que viria. Mas ele tinha sua razão de estar, e ninguém o culparia. Lutou por anos em busca de salários mais justos e quando todo tipo de luta foi suprimida ele não admitiria seguir naquelas condições! Pediu conta havia 3 semanas. A cada gole da bebida forte, engolia junto a dor de admitir a si próprio que sem o salário chegando no fim do mês ele não sabia como lidar com as despesas básicas da família.

José voltava pra casa abatido, pronto a dar a notícia de mais uma reprovação. Sabia que ninguém diria grosseria alguma e, aquilo sim, fazia a ferida doer mais. Foi o não dizer nada da família que o colocara ali. Família de médicos, era só o que ele ouvira ao longo dos anos. Ninguém disse diretamente "vai lá, sede o próximo". Depois da quarta tentativa e de ver colegas se formando, ele não conseguia explicar a si mesmo porque até então não tinha contado a ninguém sua paixão pela geografia.

Ana se remexia na cama. Sabia que o sono não viria, como nunca vem. Mas esta noite em especial ela se recusava a, mais uma vez, dormir por meio dos remédios fortes. A cabeça a mil fazia, sem parar, considerações e desconsiderações sobre seu próprio caso. Sim, ela não dormiria aquela noite, mas logo, dia após dia o cansaço viria e o corpo então se renderia ao sono. Seria a oportunidade para tudo se normalizar. Mas até lá os dias de trabalho no escritório seriam muito mais longos, e os momentos de lazer no horários "normais" não seriam proveitosos. Tomou o remédio pensando no quanto queria se lembrar como eram os sonhos.

No escuro da noite já alta, Gabriela tateia com os olhos arregalados as teclas de um computador. A visibilidade é quase nenhuma e ela tenta se esquivar, na tela iluminada, do seu medo de escuro. Do seu medo de imaginar que lá, na escuridão da noite, se esconde um mal maior que ela. Ela se apega às palavras digitadas, "pescadas" na mente e jogadas na tela. Engana o sono porque sabe que mais uma vez não haverá nada a ser feito no dia seguinte. Ela sabe que vai rir disso com ao menos umas 4 pessoas, e fazer piada de si própria com mais 2, ao mesmo tempo que vai se sentir frustrada por não se achar. Buscava por fim, refúgio em alguem que como ela enfrentava e fugia todo dia do medo de não conseguir ser feliz, seja no que for. Mas alguém que como ela tinha seus medos próprios, fugas próprias, problemas bem individuais.

Uma outra Maria, que dá por fim um ciclo interminável de tantas outras Marias, Anas, Marcos, Pedros, Gabrielas e Josés que vivem da ilusão de que estamos todo dia criando nossos pequenos castelos pra se proteger da vida real.
Pessoas que sempre acreditam que seus medos, problemas e anseios são maiores e mais urgentes.
Todos vivendo à palo seco, porque sabem o que nenhum dicionário vai ensinar: que não há nada mais a palo seco do que a vida.



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A canção entra aos ouvidos e o nome logo me vem a cabeça. O buscador da internet, que em casa é um grande amigo, aqui me soa traidor. Demoro longos minutos para achar em um dicionário de expressões o significado da frase.

A palo seco -
desprotegido, frágil, desamparado. A expressão, assim como a palavra palo não consta dos dicionários consultados pelo autor, mas há três registros significativos na região:
"O cante a palo seco/é um cante desarmado: /só a lâmina da voz/ sem a arma do braço / que o cante a palo seco/ sem tempero ou ajuda/ tem a abrir o silêncio/ com sua chama nua” - “A palo seco”, João Cabral de Melo Neto, o que o baiano Tom Zé registrou no encarte de seu disco “No jardim da política”.
É também o título de uma música de Belchior, gravada por ele e por Ednardo:
“Se você vier me perguntar por onde andei /
no tempo e que você sonhava /
de olhos abertos lhe direi/
amigo eu me desesperava(...)"

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Auto exilio II

Conhecer você é como desbravar algum novo território.
Não precisa ser uma nova cidade, um mar nunca antes navegado...
É como ir onde nunca se foi e apenas perceber que você gostou de chegar la.
Por você. Pelas coisas que você gostou, indiferente do pensamento do mundo.

O caminho era difícil, e até cansativo para uma sedentária como eu.
Passam os prédios, a grama, a beira da lagoa. Sobe o pé da pedra grande, atravessa os canos.
O sol prestes a se pôr, os mangues, a água, as montanhas e a cidade.
O lugar já é comum para os outros que ainda assim apreciam.
Os olhos voltados para a paisagem natural. E o visual realmente impressona! O verde é tão verde, e o céu se cobre em tons de azul e vermelho, formando quase um lilás.
A noite aos poucos cai e os olhos ainda se vidram no horizonte, enquanto meu corpo, minha alma e tudo mais se voltam para o lado oposto.
Luzes de cidade, pontes recém construídas, engarrafamentos, gente.
Alguem comenta do impacto da ponte na vista, outro dos problemas no trânsito.
Todos reagem dizendo do sonho de um lugar tranquilo para viver e criar sonhos.

Meus olhos brilham em ver o contraste.
Na vista, na vida e na vontade.

"O medo fica maior de cima da pedra mais alta,
Sou tão pequenininho de cima da pedra mais alta.
Me pareço conchinha
ou será que conchinha acha que sou eu?
Tudo fica confuso de cima da pedra mais alta"¹

Talvez me falte coragem para outra coisa.
Eu quero é encarar o mundo.
Com quantos lados vierem.
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¹A pedra mais alta - O Teatro Mágico